terça-feira, 4 de julho de 2017

A Queda do Coronel

Nertan Macedo

Esta é a história de um pacto de coronéis sertanejos, celebrados no Juazeiro, do Padre Cícero, no ano longínquo de 1911. O assunto é puxado a rosário, rifle e punhal, temperos de quem gosta e se dispõe a saborear esses componentes da saga nordestina.

Há muitos anos, governava o Ceará um poderoso chefe da oligarquia local, Antônio Pinto Nogueira Accioly, eleito senador nos últimos dias da Monarquia. Com o súbito advento da república no Brasil, o velho Accioly não chegou a ser empossado. Mas, como astuto cacique provinciano, ele  esperou pacientemente, que fossem amainadas as paixões dos primeiros tempos republicanos, para novamente se apoderar das rédeas do situacionismo no Estado.


Nogueira Accioly, no centro, de cartola e camisa clara, em visita ao Rio de Janeiro, ao lado de correligionários e familiares - 1910   

Governando-o longamente, ora sentado ele próprio na cadeira do príncipe, como chefe do executivo, ora através de prepostos por ele indicados, graças ao apoio de um bem montado sistema composto de chefes sertanejos, amigos e parentes caudilhescos.
Mas, como diz o velho ditado, não há bem que sempre dure nem mal que nunca se acabe. A demorada oligarquia dos Accioly terminou por cansar o povo e a paisagem do Ceará. De resto, em todas as capitais do país, onde esses chefões prosperavam, o descontentamento e a revolta começaram a dar seus primeiros sinais. E onde havia maior liberdade de imprensa e muita surra em jornalistas desabusados, a virada começou a acontecer.

O Governo Federal, a quem não se pode negar certo faro nos momentos de exaustão popular, tomou afinal uma decisão: abandonar momentaneamente os chefões oligarcas à fúria da população. Assim, os terríveis coronéis do sertão, sentindo enfraquecer o apoio do poder central, encolheram-se e adocicaram-se. Mas o Dr. Accioly não era homem de amolecimentos e teve de ser deposto à bala pelos revoltosos de Fortaleza.
Escapando ao tiroteio, retirou-se para o Rio de Janeiro, onde passou a viver num ameno exílio, tipo belle époque, cercado de correligionários que a ele se vieram juntar e chegando mesmo a usufruir de alguma influência junto ao Presidente da República.

Enquanto isso os coronéis do interior do Ceará, inspirados pelo carismático Padre Cícero, haviam feito um pacto no sentido de manter os ameaçados feudos oligárquicos no Estado. A 14 de julho de 1912, em substituição ao deposto Accioly, assume o governo, o Coronel do Exército Marcos Franco Rabelo, homem culto, de convicções democráticas. Foi recebido com entusiasmo pela população de Fortaleza, que logo o batizou de libertador. Tornou-se em pouco tempo muito estimado na capital.


manifestação popular pela posse do coronel Franco Rabelo, vendo-se a Rua General Sampaio em frente ao prédio do Tiro de Guerra - 1912

Mas o coronel Franco Rabelo, inspirado nos princípios de Liberdade, Igualdade e Fraternidade, exagerou na sua campanha pelo aperfeiçoamento democrático no interior do Estado. Enquanto em Fortaleza o povo cada vez mais se entusiasmava com o Libertador Franco Rabelo, os coronéis, acuados no sertão, rilhavam os dentes, instigados pelo Padre Cícero.

Franco Rabelo decide agir duramente no interior. Manda seus soldados desarmar e prender cangaceiros. Pela primeira vez alguns chefes locais, ricos e cheios de prestigio, foram processados e compareceram a júri. Os coronéis inquietos, organizaram nos bastidores, um pequeno mas decidido núcleo de oposição ao bravo coronel, com fumaças de governante civilizado.


em 1912 foi lançada uma nova marca de cigarros, Libertador, com a imagem do governador Franco Rabelo. 

Acontece, porém, que Franco Rabelo escorrega numa casca de banana. Recusa apoio ao General Pinheiro Machado, candidato do próprio Presidente da República ao Palácio do Catete. E nessa época, o Presidente Hermes da Fonseca diz, abertamente, a um grupo de parlamentares: para o Franco Rabelo eu tenho muito pau, de agora em diante!

A esta altura dos acontecimentos, o ágil Padre Cícero, acolitado pelo médico e caudilho Floro Bartolomeu – seu primeiro ministro da caatinga – e mais os coronéis signatários do pacto de 1911, organizam um temível exército de cangaceiros, com armas contrabandeadas e – pasmem – apoio federal, para marchar sobre Fortaleza à maneira dos invasores visigodos.


Padre Cícero, ao lado de amigos e correligionários.

No Rio, em vão, o senador Rui Barbosa ataca o Padre Cícero, comparando-o a Antônio Conselheiro, e chamando-o de caudilho tonsurado. Os cangaceiros do Padre e dos Coronéis amotinados nem sabem quem é Rui Barbosa e já passeiam, ferozes, pelas ruas de Fortaleza, armados de rifles e punhais – sem esquecer seus rosários, pendurados no pescoço – provocando verdadeiro terror na população. E no meio dessa turba, incrível como pareça, circulavam aventureiros estrangeiros, fantasiados de jagunços nordestinos. 

Componentes do exército de Padre Cícero

Há uma narrativa de Rodolfo Teófilo que diz bem dessa multinacional revolucionária: “A Fortaleza chegaram um alemão, dois italianos, alguns turcos e árabes e um uruguaio, o célebre Dom César, um perito em arrombamentos de cofres”.
Era o Exército Popular do Padre Cicero. Todo o interior do Estado já estava nas mãos da jagunçada do patriarca. Arma-se ainda o povo da capital para defender seu governador. Os marítimos vão ao palácio e juram morrer pelo coronel. Nada assegura mais a legalidade. Franco Rabelo está perdido e sitiado por sertanejos barbudos, bandoleiros que lutam pelo Padre Cícero sob a proteção de Nossa Senhora das Dores.

O epílogo é digno de um romance de Jorge Amado ou Gabriel Garcia Marquez. Franco Rabelo abandona o Palácio do Governo, fardado, sob intensa aclamação do povo da capital. Dispensa, no entanto, a espada que deveria carregar à cinta. Prefere levar na mão um exemplar da Constituição Brasileira, um exemplar anotado pelo erudito João Barbalho. 
Foi-se para sempre o Libertador Franco Rabelo. Ao que tudo indica, não conhecia o Ceará. Nem o Brasil.

Crônica de Nertan Macedo, publicada em jornal de Brasilia.
fotos: arquivo Nirez, livro Memórias do Comércio e jornal O Estado.

Nenhum comentário:

Postar um comentário