sexta-feira, 17 de fevereiro de 2017

Toponímia no Sertão do Ceará – sob o signo da violência

De modo geral, nas mais diversas instâncias, a violência se constituía em parcela integrante e visceral do sertão cearense. Era uma presença explicita e emergia em variadas formas, permeando as tramas sociais e confirmando seu lugar de destaque na construção de memórias coletivas.Um dos registros representativos da repercussão da violência era a nomenclatura de alguns lugarejos ou fazendas. Tais locais insistiam em trazer em suas denominações a lembrança das mortes e dos conflitos que marcavam suas histórias. 

Na velha ribeira do Rio Salgado, caminho que levava para a região do Cariri, ainda figura a toponímia que preserva um testemunho irrecusável de sangrentos episódios: “Batalha”, “Pendência”, “Matança”, “Juiz”, “Emboscada”. Na ribeira do Jaguaribe apareciam lugares chamados “Defuntos”, “Ossos”, “Trincheiras”, “Várzea da Perdição”. A Freguesia de Nossa Senhora do Riacho do Sangue herdara esse nome de uma batalha entre as famílias de sesmeiros, após uma luta encarniçada pela posse da terra: morreram tantas pessoas que o sangue tingiu de vermelho a água do riacho.

Baturité - Igreja Matriz N. S. da Palma (IBGE) 

O Sitio Bacamarte, localizado na Serra de Baturité,  ganhou esse nome após seu dono, Alexandre Mourão, ter cansado de perseguir um inimigo, sem sucesso, e resolveu sentar moradia. Não ficou muito tempo: logo voltou a envolver-se em tiroteios e perseguições, passando parte da vida lutando para se livrar das prisões. A mudança de governo na província ditava o sucesso ou não das empreitadas judiciais para colocá-lo atrás das grades.

Na então cidade do Ipu, em fins do século XIX, o cronista Antônio Bezerra encontrou no município um arrabalde conhecido como “Alto dos Quatorze”. O nome fazia referência a um sangrento episódio onde fora assassinado um homem que tinha quatorze filhos. Outra área que trazia em seu nome a marca da violência, era o “Saco de Bala”, região localizada na Serra da Ibiapaba. Depois de uma série de batalhas referentes ao célebre conflito entre as famílias Monte e Feitosa, fora perdido pelos Feitosa, um saco contendo munição, episódio que deu nome à localidade. Tal nomenclatura atravessou séculos e ainda figura no reconhecimento de trecho da citada serra.

Não era raro encontrar-se no nome dos lugares a lembrança de guerras, mortes e armas, lembranças construídas a partir da referência cotidiana de assassinatos e agressões. E que estabeleciam registros vulgares da memória, evidenciando situações associadas a atentados contra a vida.

O primeiro historiador de ofício a fazer um registro da história cearense, Pedro Theberge, afirmou que logo após a guerra entre Monte e Feitosa, um membro dessa última família, chamado Manoel Ferreira Ferro, ainda na primeira metade do século XVIII, entrou em nova pendenga. Seu rival era um rico português de nome José Pereira Lima, e a disputa se deu em função de uma posse de terra no Brejo Grande. Depois de uma série de tentativas legais para a resolução da pendência, iniciou-se a guerra. Houve mortes dos lados de ambos e o português adotou  como fruto do empenho em matar seu opositor, um novo nome: “Aço”, em oposição ao “Ferro” de Manoel Ferreira Ferro.

O jornal Pedro II de outubro de 1846, publicava o relatório do alferes Bento Ferreira do quartel de Sobral. Nele era descrito uma série de crimes relacionados à perseguição de membros da família Mourão. Nas linhas da narrativa aparece um indivíduo chamado Joaquim Mata-Irmã. A alcunha tinha uma história: Joaquim havia recebido de seu tio, coronel Paulino Galvão, a incumbência de matar a própria irmã, Dona Delfina. Para cumprir sua missão “Mata-Irmã” contratou dois cabras para emboscarem a irmã, que foi morta a pauladas. Enquanto os agressores matavam a mulher, o irmão escutava seus gritos de socorro e ao mesmo tempo as súplicas da sobrinha para intervir em defesa da mãe.

Próximo à fronteira do Ceará com Pernambuco, na comarca de Flores, ao sul do Crato, (região que atualmente pertence ao município de São José de Belmonte, a 479 quilômetros de Recife - [grifo nosso]), aconteceu o episódio que repercutiu em todo o país: em 1838 uma carta fora enviada ao presidente da Província de Pernambuco, onde havia um relato acerca de um homem chamado João Antônio, que após viagem feita ao sertão dos Inhamuns, havia proclamado sagrados dois grandes rochedos – localizados num sitio chamado Pedra Bonita. Segundo João, tais rochas guardavam um reino encantado, onde depois de banhados pelo sangue de homens, mulheres e crianças – que posteriormente ressuscitariam – libertar-se-ia um exército comandado pelo Rei Dom Sebastião (*) que marcharia de dentro das pedras e instalaria uma época de fartura e justiça. 

cenário da Pedra do Reino baseado na obra de Ariano Suassuna idealizado pela Rede Globo na minissérie Pedra do Reino (imagem G1)

No dia 04 de maio de 1838, começaram as imolações e durante três ou quatro dias foram sacrificados 42 pessoas: 21 adultos e 21 menores. No dia 17 de maio João Antônio foi assassinado pelo próprio irmão, Pedro Antônio. Após sua morte houve dispersão parcial dos adeptos da Pedra do Reino, e uma divulgação maior sobre os acontecimentos que envolviam tais mortes. Uma tropa oficial, composta por 26 soldados marchou sobre os remanescentes, e o resultado desse encontro foi uma luta severa que resultou em ferimentos e mortes em ambos os lados.

Numa região assolada por constantes secas e pela escassez de alimentos, não era de se estranhar o aparecimento de profetas e mágicos que prometiam comida e fartura aos seus adeptos. O mais instigante, foi a forma pela qual o culto sebastianista encontrou para legitimar o retorno do rei – era preciso banhar as pedras com sangue, pois este sintetizava uma linguagem de negociação bastante utilizada pela população sertaneja: a violência.

A história da Pedra do Reino ainda hoje é repetida pela memória oral dos moradores do Cariri, ganhando uma versão romanceada por Ariano Suassuna no livro “A Pedra do Reino”. Nomes de sítios, fazendas e alcunhas, histórias fantásticas de reinos encantados, convergiam num fluxo contínuo para a construção de memórias, cujos pilares eram sedimentados na narrativa de situações de derramamento de sangue, de assassinatos e agressões por vinganças.


(*) A Lenda de Dom Sebastião no Nordeste Brasileiro

O sebastianismo é um fenômeno secular, que muitas vezes é visto como uma seita ou elemento de crendice popular. Teve sua origem na segunda metade do século XVI, surgindo da crença na volta de Dom Sebastião, rei de Portugal, que desapareceu na batalha de Alcácer-Quibir, na África, no dia 4 de agosto de 1578, enquanto comandava tropas portuguesas. Como ninguém o viu tombar ou morrer, espalhou-se a lenda de que El-Rei voltaria. Alimentado por lendas e mitos, sobreviveu no imaginário português até o século XVII. 
        
O sebastianismo tem suas raízes na concepção religiosa do messianismo, que acredita na vinda ou no retorno de um enviado divino, o messias; um redentor, com capacidade para mudar a ordem das coisas e trazer paz, justiça e felicidade. É um movimento que traduz uma inconformidade com a situação política vigente e uma expectativa de salvação, ainda que miraculosa, através da ressurreição de um morto ilustre.  
Chegou ao Brasil, principalmente ao Nordeste brasileiro, no século XIX. Unindo fanatismo religioso com ideias socialistas, o movimento se redescobriu no sertão nordestino, assumindo características próprias através de símbolos e do imaginário popular.

Fontes:
Vieira Júnior, Antônio Otaviano. Entre paredes e bacamartes: história da familia no sertão (1780-1850)/Antônio Otaviano Vieira Júnior - Fortaleza: Edições Demócrito Rocha; Hucitec, 2004.

GASPAR, Lúcia. Sebastianismo no Nordeste brasileiro. Pesquisa Escolar Online, Fundação Joaquim Nabuco, Recife. Disponível em: <http://basilio.fundaj.gov.br/pesquisaescolar>.


Nenhum comentário:

Postar um comentário