quarta-feira, 19 de agosto de 2015

Quintino Cunha, Advogado, Poeta e Irreverente

José Quintino da Cunha nasceu na em Itapajé, Ceará, antiga vila de São Francisco de Uruburetama, no dia 24 de julho de 1875, filho de João Quintino da Cunha – professor e jornalista e de D. Maria Maximina Ferreira Gomes da Cunha, professora e solista da igreja. A educação básica foi cumprida na Escola Militar do Ceará, pois Quintino tinha  propensões à vida militar. Com a extinção da entidade, o poeta, que já fazia versos aos 15 anos, embarcou para a Amazônia.

Ali recebeu provisão para advogar, antes mesmo de se formar em Direito, ficando lá por cinco anos. Depois, em 1907 viajou para a Europa, onde publicou o seu primeiro livro, “Pelo Solimões”.  Conviveu e fez amizade com diversos escritores estrangeiros.  Depois voltou ao Ceará e matriculou-se na Faculdade  de Direito do Ceará, concluindo os estudos em 1909. Em seguida começou a exercer a profissão de advogado criminalista.

Quintino tinha o dom da oratória, mas ficou realmente famoso pela sua faceta de boêmio e, principalmente, pelas suas tiradas criativas, repentes que faziam o deleite dos amigos e causava inveja aos inimigos. Torna-se, desde então, no Ceará, orador consagrado, repentista, poeta boêmio, além de profissional do Direito. Casou-se várias vezes, e vivia em constante penúria financeira.




Quintino Cunha era figurinha carimbada nos cafés e bares da Praça do Ferreira dos anos 20/30. Conta Raimundo Girão que, Quintino pulava de mesa em mesa e fazia do Café Riche seu escritório de advocacia. Orador fluente e singelo, ele tinha clientela, embora não a procurasse. Suas argumentações no júri tornaram-se famosas pela originalidade, porém seus apartes circulavam como inimitáveis.

José Barros Maia, o arquiteto Mainha, conta que conheceu Quintino Cunha nos anos 30, um tipo muito especial. Defendia um réu com grande brilhantismo e, no dia seguinte, andava de chinelo pelas ruas. Certa vez vinha em um trem, de chinelo, com uma cesta de ovos e o Dr. Campelo, que era um homem afamado e elegante, encontrou-se com Quintino  e disse: “Quintino, você nesses trajes envergonha a classe”  Ele replica: “Campelo, felizmente eu envergonho a classe pelos pés, e você a envergonha pela inteligência”. E tinha outra com o J. da Penha. Ele vai entrando na Assembleia quando J. da Penha vem descendo, acompanhado de uma prostituta. Aí perguntaram: “Quintino, o que é isso”? E ele: “é um homem que se diz Penha atrás de uma mulher que se dis puta”  
  
A Praça do Ferreira da época de Quintino Cunha - anos 30 

Não se sabe ao certo qual situação inspirou Quintino, mas são dele os versos: “Adeus casinha da fome, jamais me verás tu/ Aqui criei ferrugem nos dentes, teia de aranha no cu”. A irreverência do poema, dizem, teria nascido de uma temporada na casa de amigos, ainda na infância, onde não lhe serviram nada além de bolachas e água. Mas se fala também de um curto período na fazenda de um de seus clientes, conhecido pela mesquinhez.

Certa vez, Quintino foi contratado para defender um réu em Natal. O promotor, na sua sustentação oral, citou três grandes juristas franceses que reforçavam a tese defendida pela acusação. Quintino, aproveitando a deixa, também invocou a falácia do apelo à autoridade e recheou a sua sustentação oral da seguinte forma: “caros jurados, como dizia o grande Filomeno Gomes, a lei não deve ser flexível, e sim rígida, coesa, soberana e forte”. O júri, impressionado com a grande erudição demonstrada pelo advogado, inocentou o acusado. Após a decisão do júri, o jovem promotor perguntou a Quintino: “nobre colega e bom mestre, por favor, me dê o nome do livro daquele grande jurista Filomeno Gomes que você citou, pois fiquei admirado com a força das palavras dele”. Ao que Quintino respondeu: “Coisa nenhuma! Filomeno Gomes é um vendedor de cigarros lá do Ceará”.

Em outra ocasião Quintino teria presenciado uma discussão acalorada entre um advogado e um promotor quando ocupava temporariamente o cargo de juiz da comarca de Lages.  O senhor é um mentiroso! , gritou um.  E o senhor é um caluniador!, esbravejou o outro. Foi a vez de Quintino:  Agora, que os dois já se apresentaram, podemos continuar os debates.

Noutro júri realizado no Ceará, o assistente da acusação mandou fazer um caprichado desenho da arma do crime. Exibiu aos jurados uma cartolina branca com uma ilustração detalhada do punhal utilizado para assassinar a vítima. Vendo que os jurados haviam se impressionado com a gravura, o matreiro advogado Quintino Cunha pediu um aparte e perguntou:
– "Caro colega, caso aqui estivéssemos tratando do crime de sedução, qual seria o instrumento do crime que Vossa Senhoria estaria aqui apresentando aos jurados?" Todos caíram na gargalhada. O réu acabou absolvido. 

De acordo com Otacílio de Azevedo, Quintino Cunha era poeta, mas não se misturava muito com a classe. Preferia o convívio dos advogados, deputados e desembargadores. Era grande orador, bom advogado, melhor do que poeta. No que era realmente extraordinário era no repente, na piada, no improviso. A grande maioria de suas vitórias no fórum era devida mais a sua presença de espírito do que mesmo à sua cultura jurídica.

Otacílio lembra um dia quando estavam numa banca de café, e alguém se aproximou e disse: Quintino, você já sabe que o Brasil vai entrar na guerra? E ele imediatamente: então vão ser precisos dois exércitos. Dois exércitos, perguntaram – por quê? E ele ferino: um para levar o outro à força...

Para o escritor, Quintino poderia ter-se projetado em qualquer campo de atividade intelectual, graças à sua formidável inteligência, à sua memória prodigiosa, à sua capacidade de apreensão imediata das coisas. Esbanjou, porém, o seu talento nas bancas de cafés, provocando risos nos seus círculos de amigos que o acompanhavam noite e dia.

Um dia Quintino viajava no bonde, perto do motorneiro, aí de repente, dá o sinal para parar. Olha para os outros passageiros e diz: – pessoal, vai descer um corno! Todo mundo ri. Ele desce e diz: – leve o resto, condutor!

Palácio Senador Alencar, sede da Assembleia Provincial e mais tarde, Legislativa em 1930

Quintino Cunha foi Deputado Estadual, ocasião em que defendeu a melhoria da instrução do povo e lutou contra a extinção da Faculdade de Direito, então cogitada na Assembleia.  Residia na Av. Visconde do Rio Branco, 3312 quando faleceu, na madrugada de 1º de junho de 1943, aos 68 anos de idade. Foi sepultado no Cemitério São João Batista, em cuja lápide com sua fotografia, consta a seguinte inscrição: "O Padre Eterno, segundo  refere a História Sagrada, tirou o mundo do nada  e eu nada tirei do mundo".



Entre Nuvens

Ameaça chuva. O pássaro na rama
Vem de ocultar-se. A fera permanece
à sombra, no covil. Tudo parece
triste como a saudade de quem amo.

Enquanto o céu apenas se recama
de nuvens, não; mas quando se encandece,
 de um relampear profundo,
a chuva desce por fina força a chuva se derrama.

Entre nós outros, também o tempestivo
amor é assim como este quadro vivo
que, há pouco a natureza dominava.

Falo por mim, tirando por Maria,
pois quando minha alma relampeava,
 nos seus olhos tristíssimos chovia...
 
 
Fontes:
Raimundo Girão – Geografia Estética de Fortaleza
José de Barros Maria – Recordar é Viver de Novo
Otacílio de Azevedo – Fortaleza Descalça



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