sexta-feira, 19 de setembro de 2014

Dragão do Mar - o jangadeiro da campanha abolicionista

Praia de Canoa Quebrada em Aracati

A luta pela libertação dos escravos no Ceará talvez não se antecipasse ao resto do país, se uma espinha de peixe tivesse provocado a morte do menino negro e mirrado, nascido em Aracati, filho do pescador Manoel do Nascimento e de Matilde Maria da Conceição, residentes em Canoa Quebrada. Com a espinha atravessada na garganta, foi desenganado pela comunidade e batizado “na hora da morte”, com o nome de Francisco José do Nascimento, que depois seria conhecido em todo o Brasil por “Dragão do Mar”.
Nascido em 15 de abril de 1839, bem cedo perdeu o pai, que se aventurou num seringal do Amazonas, atraído pela lenda de riquezas. O avô, também jangadeiro, morreu no mar. Sem condições de criar os filhos, Matilde Maria da Conceição viu-se obrigada a dar a criança de oito anos de idade para uma família de maiores recursos. O escritor Edmar Morel, autor do livro “O Dragão do Mar”, cita trecho das memórias do abolicionista: 

 – minha mãe era alta, forte, muito morena, sendo, porém mais clara do que meu pai. O seu nome era Matilde Maria da Conceição, e por isso fiquei conhecido para o resto da vida como “Chico da Matilde”. Como Chico da Matilde fui tratado pelo José do Patrocínio e até pelos jornais da Corte. 
Ainda criança Nascimento serviu de garoto de recados no veleiro Tubarão que transportava mercadorias para Natal, Recife e Fortaleza. Sem poder frequentar escola, aprendeu a ler com muita dificuldade, com 20 anos de idade. Em 1859, teve oportunidade de trabalhar nas obras do porto de Fortaleza, mas preferiu a aventura do mar. Embarcou então num navio que fazia a linha Maranhão-Ceará. 
Nesta época ficou muito impressionado com o episódio ocorrido no barco “Laura Segunda”, cuja tripulação foi dizimada pelos escravos revoltados com os castigos violentos a que eram submetidos. Os revoltosos foram presos e enforcados na Praça dos Mártires (atual Passeio Público). Nascia naquele instante a preocupação com o suplício de milhares de negros. Durante as viagens presenciava cenas de barbarismo no tráfico de homens e mulheres.
Nesse ambiente é que nascimento, já sabendo ler e escrever, sente que o drama daquele amontoado de infelizes é parte de sua vida. Ele é um homem livre, mas é um mulato e melhor do que ninguém sabe das decepções que passa, do infortúnio de sua gente, humildes pescadores do Ceará, pretos e caboclos escravizados a um patrão branco, desumano e perverso.

 Bairro do Mucuripe nos anos 40

Além do contato com marinheiros de outros países, que não tinham escravos, Francisco José do Nascimento começava a se revoltar com a própria condição de negro. Em Fortaleza, onde passou a morar, havia faixas especiais para escravos e negros nas praças. Até na igreja, ricos e brancos tinham privilégios. Sentavam-se em cadeiras pagas e numeradas.
Em 1874 foi nomeado para o cargo de segundo prático na Capitania dos Portos. Três anos depois contribuiu para o trabalho de socorro às vitimas da grande seca de 1877, que dizimou de fome e peste mais de um quarto da população cearense. Conheceu João Cordeiro, famoso por suas ideias republicanas, além de ser anti-escravagista. O tráfico de escravos para o Sul se intensificou devido a péssima situação financeira dos latifundiários, em razão da seca.
Enquanto isso, a sociedade “Perseverança e Porvir” transformada depois em Sociedade Cearense Libertadora, alforriava escravos, graças à ação de pessoas dedicadas à extinção do comércio de negros. De acordo com João Brígido, havia no Ceará 31.516 escravos. A maioria se ocupava de trabalhos domésticos em consequência da destruição da lavoura.
A sociedade promovia também roubos de escravos e desmoralizava as autoridades com suas aventuras durante a noite nas fazendas vizinhas. Os membros audaciosos levavam os escravos para lugares seguros, com a ajuda do Dragão do Mar. A reação dos grandes proprietários de terras foi logo sentida. O coronel Antônio Pereira de Brito Paiva, do Partido Liberal, acusou de furto, Nascimento, Joaquim Teles Marrocos, Xavier de Castro, Isaac Amaral e outros dirigentes da Libertadora. 

 Porto de Fortaleza

O jornalista João Brígido, conhecido por sua escrita panfletária, advogava em favor do coronel. Por parte dos abolicionistas, Alminho Álvares Afonso e Frederico Borges. O julgamento foi realizado na antiga Câmara Municipal, na Rua Floriano Peixoto.
As sessões contavam com a presença de quase toda a cidade e foram motivo de zombaria. Isto porque Isaac Amaral, proprietário de várias carroças, ordenou que enchessem todas elas com latas vazias. No mesmo horário das audiências, as carroças davam voltas no quarteirão fazendo um barulho ensurdecedor. O juiz, favorável à causa abolicionista, adiava as sessões. Depois de várias tentativas frustradas de prosseguir com o inquérito, o coronel escravagista desistiu, pedindo paz aos libertadores.
A primeira mulher de Chico da Matilde, Joaquina Francisca do Nascimento era também favorável à causa abolicionista. Ela pertencia a Sociedade das Cearenses Libertadoras, fundada em 1882, que tinha na presidência Maria Tomásia. Com residência na praia, próxima ao Seminário da Prainha, Nascimento construiu amplo galpão no fundo do quintal para esconder escravos. Por sua participação no movimento, foi ameaçado pelas autoridades.

 bairro da Prainha, onde residia o Dragão do Mar - foto de 1900

Com o crescimento da luta, Nascimento contribuiu para o fechamento do porto de Fortaleza, proibindo o embarque de escravos. É atribuída a ele a frase: “neste porto não se embarca mais escravos”.
Em 1882 a cidade ficou em festa para receber a visita de José do Patrocínio, em campanha nacional pela abolição. Na chegada, os pescadores tendo a frente Dragão do Mar, abriram as velas, num espetáculo que emocionou o visitante. No dia 24 de maio do ano seguinte, participou da sessão solene no plenário da Assembleia, quando Fortaleza libertou os escravos. O seu retrato está também no quadro de José Irineu de Sousa, que perpetuou a solenidade. Em 25 de março de 1884, a grande vitória: A libertação dos escravos em toda a província.
 Dragão do Mar dirigiu-se então à Corte Imperial no antigo barco negreiro Espírito Santo, levando a jangada que pela primeira vez impediu o tráfico de escravos no Ceará. A embarcação doada ao Museu Nacional desapareceu misteriosamente devido a pressões das autoridades que consideravam uma afronta uma entidade do governo manter um símbolo de luta e agitação. 
No dia 3 de março de 1889 foi reconduzido ao caro de prático, do qual tinha sido demitido por sua participação no movimento abolicionista. Em 1890 recebeu a patente de Major-Ajudante de Ordens do Secretário Geral do Comando Superior da Guarda Nacional do Estado do Ceará.
O tempo passou e a saga do Dragão do Mar começou a ser esquecida pela população, influenciada pelos costumes europeus e preconceitos raciais. Decepcionado, longe do seu grande amigo senador João Cordeiro, Nascimento conhece o menosprezo, a ponto do Barão de Studart, no seu famoso Dicionário Bibliográfico, não tomar conhecimento da vida do praieiro, símbolo de um povo que lutou pela abolição da escravatura.


Extraído do livro
A História do Ceará passa por esta rua
De Rogaciano Leite Filho  

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