quinta-feira, 27 de setembro de 2012

O Beato José Lourenço e a Sociedade do Caldeirão

Beato José Lourenço (acervo do Museu do Ceará em foto de Fátima Garcia) 

Aos vinte anos de idade chegava a Juazeiro o paraibano José Lourenço Gomes da Silva, em busca de orientação do Padre Cícero, então no auge dos acontecimentos milagrosos. O padre recomendou a José Lourenço que fizesse penitência durante um determinado período e voltasse à sua presença. 
No fim do tempo marcado, Padre Cícero dizendo ter para ele uma missão, mandou  que se estabelecesse no Sítio Baixa Danta, na qualidade de rendeiro. José Lourenço transformou com trabalho diligente e planejado, uma terra árida numa das propriedades mais férteis da região. 
Lavrador primoroso, nas cerimônias religiosas vestia um hábito de beato, carregando às costas uma cruz, conduzindo penitentes ou simples devotos em procissões. Solteiro, dividia o produto do seu trabalho com os mais necessitados. O padre mandava para Baixa Danta os romeiros mais desvalidos, os fugitivos de perseguições, os que precisavam ser reeducados no trabalho. 

 Beato José Lourenço e a Santa Cruz do Deserto em 1937 
(foto do site  http://www.onordeste.com)

Personalidade marcante pelo número de adeptos que o seguia em todas as decisões,  despertava entre a população regional, muito respeito ou muita inveja. Era da total confiança do Padre Cícero que o usava como mensageiro em missões que requeressem sigilo, além de lhe confiar o trabalho de doutrinação de muitos romeiros. Apesar de analfabeto é lembrado por seus seguidores como um grande conselheiro, alguém que nunca errou uma orientação dada a seu povo. 
Na década de 1920, o Padre Cícero entregou a seus cuidados um touro que recebeu de presente. José Lourenço que dispensava um carinho especial aos animais, desde seu cavalo até o vasto criatório de aves domésticas e pássaros de todas as plumagens, recebeu com redobrado cuidado o boi “mansinho”, que logo se tornou um belo espécime da raça guzerá. Muitos criadores pediam emprestado o touro para cruzar em suas fazendas. O povo do beato tratava com esmero o “boi do meu padrinho”.  
Em pouco tempo os jornais denunciavam a crença no Boi Ápis que se desenvolvia no Juazeiro. Os padres, do púlpito, pediam às autoridades para combater a “nefanda heresia”, que se estabelecera entre os seguidores de José Lourenço. 

José Lourenço e alguns de seus adeptos (foto do site O Nordeste.Com)
 
Para acabar com a campanha de difamação, mesmo convencido da inocência do beato, Floro Bartolomeu mandou prender José Lourenço, matando o boi e tentando obriga-lo a comer de sua carne. Seus seguidores relataram que o beato resistiu dezoito dias na prisão, sem comer, ao final dos quais o Padre Cícero foi tirá-lo e mandou-o de volta a Baixa Danta.
Após a morte de Floro Bartolomeu, em 1927, o proprietário da Baixa Danta vendeu o sítio e José Lourenço perdeu todo o trabalho e os beneficiamentos feitos na terra. Padre Cícero então o desloca com toda a sua gente, longe dos olhos invejosos, para um grande terreno de sua propriedade, na Serra do Araripe – a Fazenda Caldeirão.

seguidores do Beato José Lourenço no Sítio Caldeirão. O massacre promovido pela polícia vitimou adultos e crianças (foto do quadro pertencente ao acervo do Museu do Ceará, por Fátima Garcia) 
No Caldeirão a obra de José Lourenço toma, em bem menores proporções demográficas, a dimensão social da comunidade religiosa de Antônio Conselheiro. Em pouco tempo, o Caldeirão torna-se fornecedor de mão-de-obra para as empresa agrícolas da vizinhança, além da fértil propriedade com engenho de rapadura, extensa plantação de cana, grande produção de gêneros alimentícios e algodão, além de diversificado criatório de gado vacum, caprino, ovino e suíno. Era o rico manancial de fartura a que seus sobreviventes se referem como ao “mundo de Deus que o pecado de Satanás fez desaparecer”.


Por testamento, Padre Cícero deixou a Fazenda Caldeirão para os padres salesianos. A partir da morte do padre, a Diocese do Crato tenta impugnar seu testamento com o objetivo de se apossar dos bens deixados por ele. Desenvolveu-se acirrada polêmica  com o bispo advogando o direito de confisco desses bens  para o patrimônio do bispado. 
A justiça brasileira fez cumprir as disposições testamentárias, entregando o espólio aos herdeiros nomeados, que assumiram o compromisso de respeitar a vontade do Padre, no sentido de construir um colégio em Juazeiro, proteger as romarias, e posteriormente, trazer a ordem de São Francisco para se estabelecer na cidade. 
Tomando posse de todas as propriedades que herdaram em 1936, os Salesianos, embora José Lourenço lhes pagasse fielmente a renda da terra e lhes trouxessem cargas e mais cargas de produtos do Caldeirão, deliberaram o despejo do beato e sua gente. Inicia-se então uma campanha de difamação contra ele, que era acusado de promiscuidade sexual, práticas diabólicas, dentre outras acusações. Dizia-se até que “aquilo ia ser igual a Canudos”. 

Moradores do Sítio Caldeirão 
(quadro do  acervo do Museu do Ceará em foto de Fátima Garcia) 
No dia 11 de novembro desse ano, o capitão do exército Cordeiro Neto, Secretário de Segurança do Ceará, fez uma primeira incursão à fazenda. O pretexto fora a informação de que José Lourenço havia recebido três caixas de armamentos e munições, que deveriam ser entregues ao governo. O beato mostra haver nas caixas apenas algumas imagens de santos. Não convencido dos propósitos pacifistas de José Lourenço, o secretário deixa no Caldeirão o tenente Germano, que lá permanece por um mês. Segundo os sobreviventes, ele ficou para fazer um reconhecimento da região e dos hábitos do povo, bem como arrolar todos os bens existentes na fazenda, que mais tarde seriam roubados pelas tropas.


Em 1937 o Caldeirão é atacado pelo oficial de Polícia José Bezerra. Diante da ferocidade do ataque-surpresa, o povo do Caldeirão reage, travando-se violento combate no dia 10 de maio, onde morreram José Bezerra, o filho, o genro e um cabo. Do lado do beato morreram quatro seguidores, entre eles Custódio Pereira Barros, valente romeiro paraibano, que vendo o beato em perigo, organizara a resistência, pagando com a vida sua fidelidade. Nesse embate repete-se a prática de cortar as cabeças dos inimigos mortos.

 ruínas da casa onde morou o beato José Lourenço (foto do Diário do Nordeste)
Fugindo para a serra, o beato já se dirigia com sua gente para o Estado de Pernambuco, quando foram alcançados pelas tropas, que desfecharam um ataque arrasador por terra e por ar, matando, e prendendo muita gente, no afã de prender José Lourenço  que se evadira. Os prisioneiros, apesar de torturados, não revelaram o paradeiro do beato. De 1937 a 1940 o governo persegue sistematicamente os ex-moradores do Caldeirão, que se dispersam por várias localidades. 
Com algumas pessoas, José Lourenço se estabelece na Fazenda União em Exu, Pernambuco, enquanto os policiais saqueavam o Caldeirão, incendiando o que não podia ser levado, e vendendo todos os bens móveis.

 das várias construções edificadas no Sítio Caldeirão para abrigar os camponeses participantes do movimento, restam a pequena capela de Santo Inácio de Loyola, relativamente conservada, e poucas casas em ruínas. Quanto à árida paisagem de entorno, esta permaneceu praticamente inalterada. (Foto Secult)

Com o fim das perseguições, em 1944, o beato tenta através do advogado Dr. Antônio de Alencar Araripe, uma ação judicial contra o Estado do Ceará, por agressão e furtos, solicitando uma indenização. O procurador do Estado declara a prescrição do seu direito de agir contra o Estado.
No dia 12 de fevereiro de 1946, José Lourenço morre de morte natural na Fazenda União. Seus seguidores atravessando a serra carregam seu corpo por treze léguas. Caminham por toda a noite e, ao raiar do dia chegam a Juazeiro, onde o beato é velado pelos romeiros.  José Lourenço foi enterrado no Cemitério do Socorro, bem ao lado da igreja onde se encontra o corpo de Padre Cícero.

fonte:
O Movimento Religioso de Juazeiro do Norte. Padre Cícero e o Fenômeno do Caldeirão.
de Luitgarde Oliveira Cavalcanti Barros 
(em História do Ceará, Coordenação de Simone de Souza)                 

quinta-feira, 20 de setembro de 2012

Herança Cultural Africana

O grande destaque dado à abolição, de certo modo ofuscou a importância dos elementos culturais de origem africana presentes na sociedade cearense, que são mais expressivos do que comumente se pensa.
Alguns municípios cearenses tem sua origem ligada a sítios e comunidades negras, a exemplo de Monsenhor Tabosa, antes chamado de Telha, que teve origem numa fazenda chamada Forquilha, pertencente a uma família de negros, os Teles.
Há o caso da comunidade quilombola de Conceição dos Caetanos, no município de Tururu, surgida em terras adquiridas em 1887 pelo forro Caetano José da Costa, saído de Pacoti – naquela comunidade, por décadas, até os anos 70, os negros casavam entre si, mantendo a tradição. 

 foto: Diário do Nordeste
No vocabulário cearense do dia-a-dia, há várias palavras de origem banto: angu, banguela, batuque, bambo, bunda, cabeça, cachaça, cachimbo, candomblé, moleque, e muitas outras.
Tem-se ainda manifestações artísticas, como o  Maracatu, de origem banto. Outras manifestações culturais negras locais perderam-se ao longo do tempo, como o samba de umbigada e a festa do Congo. No primeiro, os brincantes formavam uma roda, na qual um dançarino ficava a sambar no centro, depois de certo tempo ele se dirigia a um dos componentes da roda, dava uma pancada no umbigo como sinal para que o substituísse. 

 foto do site:http://girosdamocoronga.wordpress.com

A festa do Congo consistia num desfile ou procissão que reunia elementos das tradições de Angola e do Congo com influências ibéricas – entidades dos cultos africanos eram identificadas aos santos do catolicismo (daí  o porquê das festas serem aceitas pela igreja, autoridades e senhores proprietários).   
 Animada por danças, cantos e música, a procissão acabava numa igreja, em geral a da Irmandade de negros de Nossa senhora do Rosário, onde, com a presença de uma corte e seus vassalos, acontecia a cerimônia de coroação do Rei Congo e da Rainha Ginga de Angola – uma personagem da história africana. 
foto Diário do Nordeste

Mais recente são as festas em homenagem a Iemanjá, que reúne milhares de adeptos do candomblé, nas praias, no início do ano. Igualmente importantes são os cultos afro-brasileiros, tratados preconceituosamente até os dias atuais, por certos segmentos cristãos conservadores como macumba, e que por décadas foram reprimidos pela polícia.
Há de se ressaltar o papel de Mãe Júlia, líder de um terreiro no Benfica, em Fortaleza, que nos anos 1950 buscou organizar os adeptos de crenças afro-brasileiras em uma associação e negociou com as autoridades a liberdade de culto.

extraído do livro de Airton de Farias
História do Ceará  

sexta-feira, 7 de setembro de 2012

A Separação da Capitania do Ceará de Pernambuco


A partir das últimas décadas do século XVIII a economia do Ceará sofreu um processo de dinamização, sobretudo com o desenvolvimento da agricultura algodoeira de exportação. Tal surto econômico influenciou nas alterações da estrutura administrativa da capitania – como a criação de vilas – e levou igualmente ao fim da antiga vinculação a Pernambuco.

colheita de algodão (foto IBGE) 

A submissão a Pernambuco era prejudicial à Capitania do Ceará. Recife não dava muita assistência ao desenvolvimento material do Ceará e muitas vezes as modestas riquezas locais eram escoadas tanto para Lisboa como para Pernambuco. Eram comuns os ancoradouros precaríssimos, as estradas rudimentares, a penúria das vilas. A falta de dinheiro era uma preocupação constante nas localidades do interior do Ceará, e impressionava a situação de miséria da maioria da população.

Aracati em 1960 (foto O Povo)

Sendo Capitania secundária, o Siará Grande não podia comercializar diretamente com Portugal – suas exportações eram feitas através do porto de Recife, o que era um empecilho à economia local. Com a expansão do plantio do algodão no final do século XVIII, essa intermediação obrigatória por Pernambuco tornou-se alvo das críticas dos cotonicultores e comerciantes cearenses, sobretudo os de Fortaleza e áreas próximas.
Coincidem com o início do cultivo comercial do algodão os apelos feitos por capitães-mores, produtores, vereadores e os comerciantes de Fortaleza para que o Ceará ganhasse autonomia administrativa e o direito de comercializar diretamente com Portugal. Contra isso iriam se posicionar os comerciantes de Aracati e Icó, pois eram beneficiados com a intermediação e transações que mantinham com Pernambuco.
Os pernambucanos eram igualmente contra a emancipação cearense – perderiam lucros e impostos, além de verem diminuída sua área de jurisdição. As autoridades, porém, apoiaram a ideia, pois com o Ceará ganhando autonomia administrativa, gozariam de mais poderes, sem obrigação de se submeter às decisões de Recife.

Icó entre os anos 1910/20

Portugal, dentro da nova estrutura administrativa que tentava implantar no Brasil, lucraria com a separação das duas capitanias. Com um governo autônomo, imbuído de mais poderes, o Ceará talvez conhecesse um maior desenvolvimento da administração e  da economia agrícola, possibilitando inclusive um aumento da arrecadação tributária – necessidade real para um Reino que passava por apertos financeiros e cada vez mais dependente de outras potências.
Também seria interessante para Portugal porque, com o desmoronar do sistema colonial no Continente americano naquele final de século XVIII, seria mais uma forma de controlar os latifundiários locais, os quais poderiam também abraçar as “ideias iluministas” e pensar em independência das colônias.

Dona Maria I - "amor e delícia do seu povo, guiada pela sua inata beneficência" separou oficialmente O Ceará de Pernambuco, em 1799

Assim pela Carta-Régia de 17 de janeiro de 1799, a rainha Dona Maria I (a louca), separou  o Ceará oficialmente de Pernambuco, possibilitando a navegação direta da capitania com o Reino.
De início a permissão para comercializar diretamente com Portugal  não livrou a capitania da intermediação de Pernambuco – muitos comerciantes locais, especialmente os de Aracati, continuaram a negociar através de Pernambuco, mesmo porque o Ceará não possuía ancoradouros adequados para receber os novos navios a vapor, de maior calado. A separação oficial, portanto, não significou o fim da influência política e econômica de Pernambuco sobre o Ceará. Também por afinidades familiares e contiguidade territorial, estava muito ligado aos interesses de Recife, o que ajuda a compreender o envolvimento cearense em movimentos armados, como a “Revolução de 1817” e a “Confederação do Equador, 1824”.

Fonte:
História do Ceará, de Airton de Farias